Escrita e resistência: projeto transforma jovens de favelas do Recife em autores de suas próprias histórias Escritora Odailta Alves retorna a Santo Amaro, sua comunidade de origem, para conduzir oficinas de literatura e capoeira, incentivando jovens a narrar suas vivências e lutas através da poesia.
Escritora Odailta Alves retorna a Santo Amaro, sua comunidade de origem, para conduzir oficinas de literatura e capoeira, incentivando jovens a narrar suas vivências e lutas através da poesia.

Foto: Jessica Priscilla
É uma manhã de sábado e muito sol, dentro de um espaço comunitário da favela de Santo Amaro, no coração do Recife, um grupo de jovens se reúne em roda. Mas, diferente de tantas rodas de capoeira que ali acontecem, desta vez o movimento é da palavra. Entre uma batida de atabaque e um canto ancestral, surgem versos, histórias e desabafos. E no centro da roda, a escritora e educadora Odailta Alves, 45 anos, mulher negra, lésbica, ativista dos direitos humanos, acolhe cada fala como quem reconhece, nos olhos daqueles jovens, um espelho de si mesma.
Odailta nasceu ali, naquele território marcado pela desigualdade, estigma e resistência. Hoje, é doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, servidora pública nas redes de ensino do estado e do município, autora de dez livros e vencedora de prêmios literários e teatrais nacionais. Mas antes de tudo isso, foi uma menina da favela que descobriu, cedo, o poder da palavra como abrigo e arma. Agora, com o projeto “Gingando com as Palavras Pretas”, ela volta às origens para fazer com que outros jovens também se reconheçam autores — não apenas de poemas, mas de suas próprias histórias.
O projeto começou em março e segue até junho, com encontros realizados em dois sábados por mês, sempre no horário das 14h às 17h. Mês passado, os encontros foram realizados nos dias 16 e 24; mas os próximos serão 12 e 26 de abril, 10 e 24 de maio. O encerramento está marcado para 14 de junho. Este projeto conta com incentivo da Secretaria de Cultura, Governo de Pernambuco, Ministério da Cultura e Governo Federal, por meio dos recursos da Lei da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB – PE).
Ao todo, são 20 jovens — em sua maioria negros, moradores da favela, entre eles também pessoas LGBTQIAPN+. Eles se reúnem para falar sobre racismo, machismo, gordofobia, etarismo e outras violências cotidianas, e transformam essas vivências em poesia, com o corpo e com a voz.
“Não é aula no formato tradicional”, explica Odailta. “É roda, é canto, é escuta. Eles escrevem, rimam, declamam. Trazem as músicas de capoeira, falam da rua, da mãe, do medo e da coragem. Tudo vira texto. Tudo é válido. Tudo é potente.”
Cada participante recebe uma ajuda de custo de R$40 por sábado, ou seja, um estímulo financeiro importante para que eles consigam permanecer no projeto e dedicar-se à criação artística. Os encontros ocorrem no espaço de capoeira da Mestra Shirley, uma das lideranças do bairro.
A escolha pela capoeira como eixo central não é por acaso. Essa arte afro-brasileira, trazida por pessoas escravizadas, cresceu e floresceu nas periferias do Recife, especialmente em territórios como Santo Amaro. É onde a cultura negra pulsa com força, e onde a capoeira, dança, luta e rito, se mantém viva como prática política e poética.
“O canto da capoeira é o primeiro poema que muitos deles conhecem”, diz a professora. “Ali já tem métrica, ritmo, dor, ancestralidade. A gente só amplia essa escuta e transforma em escrita.”
Segundo o IBGE, Santo Amaro tem cerca de 27.939 moradores, com predominância de população negra e parda. Por muito tempo, o bairro esteve entre os mais violentos da cidade. Mas hoje, iniciativas como essa mostram que a favela é também espaço de produção de conhecimento, cultura e afetos.
A proposta surge em um contexto de retração do acesso aos espaços formais de leitura. Recife foi uma das capitais que mais registrou queda no uso de bibliotecas, segundo o Datafolha, em pesquisa apresentada no começo deste mês. Com isso, ações descentralizadas como esta se tornam ainda mais necessárias. “A literatura é um direito. E quando chega onde nunca foi levada, ela vira cura, vira farol”, afirma a escritora.
Ao final do projeto, os poemas criados pelos jovens serão reunidos em um audiolivro, narrado por Odailta e pelos próprios participantes das oficinas. O material será acessível a pessoas cegas e não alfabetizadas e será distribuído em QR Codes espalhados em lambes pelos muros da comunidade, com trechos dos textos estampados em letras grandes. “É como dizer: a poesia deles está na rua. Está no mundo.”
Com uma carreira que inclui os livros Clamor Negro – (2016), Afrochego – Poemas para Acalentar Meu Povo (2024), Pretos Prazeres e o infantil Lia de Itamaracá – O Reinado da Ciranda, Odailta é um nome que vem se tornando referência na literatura negra brasileira. Mas, para ela, o maior reconhecimento está no olhar de quem, dentro da favela, volta a sonhar.
“Quando um menino diz que nunca pensou que podia escrever um poema e termina o dia declamando, o que está acontecendo ali é mais que literatura. É uma travessia. É pertencimento” concluiu.
Em junho, a culminância do projeto será marcada por um sarau aberto à comunidade, com rodas de capoeira, poesia e celebração coletiva.
Serviço:
O quê: Projeto incentiva jovens de favelas do Recife a serem autores de suas próprias histórias
Datas das próximas oficinas:
Abril – 12 e 26
Maio – 10 e 24
Junho – 14
Onde: Espaço de Capoeira Mãe Arte, Rua Getúlio Vargas, 414 – Santo Amaro, Recife.
Horário: 14h às 17h
Mais informações: https://www.instagram.com/oficinagingandocomaspalavras