Máscaras, símbolos, valores, heróis e vilões na sociedade atual | Editorial Nerd
“Há algo de podre no reino da Dinamarca!” – Marcelo – Ato I – Cena IV – Hamlet – O Príncipe da Dinamarca.
Nos tempos de hoje, a frase poderia ser melhor traduzida como: “Há algo de podre em nossa sociedade“. Os sintomas estão aí e são muitos. O Brasil, em especial, não foge desse triste cenário. Diante da dura realidade, as pessoas se dividem entre se esconder no entretenimento e na diversão (bebida, futebol e novelas). Ou rejeitar os problemas e enfrentar, protestar, lutar por melhorias. O dilema muito bem retratado no filme Matrix (1999), no desafio ao protagonista Neo,vivido por Keanu Reeves. O desafiador Morpheus (Laurence Fishburne) oferece duas pílulas. Uma azul e outra vermelha, numa das muitas referências ao clássico livro, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll. Tomar a pílula azul representa aceitar a vida como ela é e se manter na mesmice e na rotina, fingindo não enxergar os problemas ao nosso redor, enquanto tomar a pílula vermelha representa buscar maior conhecimento e consciência dos problemas e tentar fazer alguma coisa para mudar, mesmo assumindo riscos.
Coringa e o Brasil – Parece que o Deputado Estadual, Rodrigo Maroni, do Podemos, tomou a pílula vermelha e assumiu riscos ao subir na tribuna da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, na última terça-feira (28), portando a máscara do Coringa, para protestar contra a falta de estrutura em segurança, educação e saúde no seu Estado e na sociedade brasileira. Em seu discurso, afirmou: “Teve o filme Coringa lançado para dizer exatamente o quê: para dizer que sem educação, sem segurança, sem saúde pública, vamos ter uma sociedade de Coringas que vão estar se matando por falta de perspectiva de emprego“.
Enquanto recebia vaias e aplausos, foi advertido por Luís Augusto Lara, presidente da Assembleia, sobre o uso da máscara, como uma violação ao regimento da casa parlamentar. A notícia se espalhou e viralizou pela Internet. O protesto do Deputado foi pertinente?. Ele deveria ter usado a máscara de um personagem psicopata como símbolo de seu protesto? Um sociopata? Um terrorista? Um agente do caos? O deputado aproveitou a evidência em torno do Coringa, por conta do sucesso de público e crítica do filme, de 2019, focado no personagem, interpretado pelo ator, Joaquin Phoenix. Foi oportunismo do Deputado para chamar atenção do público? Afinal, o filme do Coringa foi reconhecido, até agora, pela Academia, com 11 indicações ao Oscar. Se o mesmo deputado realizasse o protesto com uma máscara do rosto de Betinho, o sociólogo, símbolo da campanha contra a fome, cidadão exemplar. O protesto teria a mesma repercussão? Teria a mesma visibilidade? Uma máscara com o rosto do economista, Armínio Fraga, um dos arquitetos do Plano Real. Teria a mesma repercussão? E uma máscara com o rosto do Padre Marcelo Rossi? Do piloto Airton Senna?
A grande repercussão do protesto do Deputado com a face do Coringa pode representar os sintomas da sociedade doente em que vivemos ou pode significar que o filme conseguiu a difícil tarefa de construir um personagem sociopata como consequência das negações de uma sociedade doente. Das privações, falta de perspectivas, restrição de oportunidades de uma vida digna, falta de diálogo e da busca pelo entendimento. O Coringa retratado no filme é um indivíduo esmagado pelas engrenagens da sociedade, da qual ele procura se integrar, encontrar o seu espaço. Entretanto, tudo ao seu alcance é negado, é retirado, é desumanizado. Ele nem encontra entendimento para a sua loucura. Nem compaixão. Esse foi o viés indicado pelo Deputado, Maroni. O Coringa enquanto símbolo de uma vida de privações e restrições. Independente da leitura maior que se faz do personagem tão controverso. De sociopata e agente do caos, uma faceta, de certa forma, também apresentada no filme e em muitas de suas encarnações anteriores, de abordagem mais adulta. O Coringa é adequado para ser um símbolo de luta social? De protestos?
Remember, remember – Os protestos viraram rotina pelo mundo, com outros símbolos da cultura pop e objetivos diversos, como o rosto do soldado inglês católico, Guy Fawkes, que participou de um levante em 1605, contra o rei protestante Jaime I e contra o parlamento britânico. O rosto dele passou a ser parte integrante da indumentária de protesto dos jovens, em referência ao filme V de Vingança (2005), de James McTeigue, por sua vez, adaptado de uma saga em quadrinhos homônima, de Alan Moore e David Lloyd, publicada em 1982, inspirada no clássico literário, 1984 (1948), de George Orwell.
O protagonista V, utiliza a máscara que representa Fawkes, para ocultar sua verdadeira identidade, enquanto se torna a resposta contra um governo opressor, num cenário distópico, com ataques terroristas e atentados para desestabilizar o governo. Ele próprio foi uma vítima dos excessos e desmandos do governo, em seu passado. Um indivíduo esmagado pelas engrenagens do Estado que resolve revidar. Muitos protestos reais são realizados por jovens com a máscara de Fawkes. Sendo o personagem um terrorista e agente do caos, V é adequado para ser um símbolo de luta social? De protestos?
Bella Ciao – Outros manifestantes encontram refúgio no rosto idealizado do pintor espanhol surrealista, Salvador Dali, falecido em 1989. Muitos dos jovens que saem as ruas, com a imagem de Dali para ocultar sua identidade, talvez nem saibam de quem é o rosto simbolizado na máscara. O uso dela ocorre em resposta ao fenômeno global, a série de TV espanhola, produzida e veiculada no Netflix, La Casa de Papel (2017). Um grupo de ladrões invadem a Casa da Moeda na Espanha, conhecida como La Casa de Papel, para roubar dinheiro e utilizam as máscaras para ocultar a identidade de todos, mas fingem para a opinião pública que estão roubando dos ricos para distribuir para os pobres, conquistando o apoio da população e, por tabela, dos espectadores. Daí para as ruas foi um passo curto. Sendo os personagens ladrões e agentes do caos, a figura mitificada de Dali é adequada para ser um símbolo de luta social? De protestos?
Figuras mitificadas – Para uma sociedade focada na imagem e na exposição através da mídia e da Internet, os valores difundidos parecem confusos, distorcidos, desumanizados e, até, contraditórios. Num passado não tão distante, os rostos mais populares adotados como símbolos de protesto eram artistas e figuras históricas como Chê Guevara, Cazuza, Paulo Freire, Frida Kahlo, Geraldo Vandré, Renato Russo, Jean-Luc Godard, Betinho. Apesar do surgimento de novas referências, como Marielle Franco, Malala Yousafzai ou Greta Thunberg, os símbolos de maior repercussão mundial hoje são figuras simbólicas ou versões mitificadas de figuras históricas, como a imagem de Fawkes, resgatada na obra V de Vingança ou a versão de Dali, retratada em La Casa de Papel. Talvez como resposta ao desencanto dos jovens com os referenciais do passado. Daí a predileção por figuras fictícias ou mitificadas.
Contradições – O desencontro de informações, a desinformação difundida através das fake news e publicidade disfarçada de notícia e o desinteresse da maioria da população em se esclarecer, em tomar a pílula vermelha social, (É chato; Incomoda) faz com que amplie as contradições e as distorções em nossa sociedade. Buscamos privacidade, mas expomos nossas vidas através das redes sociais e de vídeos no You Tube. Temos milhões de amigos virtuais e poucos contatos reais. As pessoas são celebradas e valorizadas pelo beleza, pela intimidade exposta e pela audiência conquistada na Internet, em detrimento de quem trabalha, quem produz e quem descobre o novo. A não ser que o novo renda muito dinheiro. Uma vez, o jornalista da Rede Globo, Pedro Bial declarou que os participantes da gincana Big Brother Brasil são heróis. Os participantes foram “sorteados” pela emissora que utiliza critérios mercadológicos de escolha, com base no potencial de audiência e ficam confinados numa casa, destilando as mazelas da condição humana, com enfase em polêmicas, vícios e defeitos, sempre de olho na audiência. Esses são os heróis? Ou são os policiais, professores, médicos, demais profissionais, empreendedores, estudantes e desempregados que lutam pela sobrevivência e pelo sucesso. Aqueles que criam. Fazem boas ações. São solidários. Contribuem para a sociedade. Esses são os verdadeiros heróis. Mas eles ostentam máscaras de protestos? Ganham audiência? Vendem jornais e revistas? Recebem salários milionários? São fenômenos nas redes sociais? Quase nunca.
Protestos virtuais – Os manifestantes virtuais são outra contradição. Lutam por melhorias pela força do clique do mouse. Realizam protestos em blogs e vídeos. Alguns são haters que desaprovam um perfil das redes sociais, como fruto de seu preconceito. Ou rebaixam a nota de um filme ou livro sem ter usufruído da obra. Utilizam a máxima Não Vi, Não Gostei. Organizam boicotes ao Netflix por um filme ou documentário considerado inadequado e esquecem que o Netflix, bem como outros serviços de streaming, são grandes bibliotecas. Atualmente, são quase 3 mil filmes e animações, além de mais de mil séries e documentários. É o mesmo que boicotar a Biblioteca Pública porque tem uma edição do Minha Luta, escrito por Adolf Hitler. Ou boicotar a Rede Globo porque viu uma cena inadequada no Big Brother. Se não gostar de um filme, novela ou série, não veja. Sem audiência, não haverá futuros contratos e novas produções naquela linha. Se não gosta de um livro, revista ou quadrinhos, não compre. Sem vendas, não haverá futuras publicações. Exigir de qualquer empresa de comunicação pela não publicação ou veiculação é censura. Censura não mais.
Para os adeptos da filosofia, uma andorinha só não faz verão, lembre-se sempre: Nelson Mandela contribuiu para acabar com o Apartheid, na África do Sul, mesmo permanecendo preso por 27 anos, por suas ideias; Mahatma Gandhi foi crucial pelo movimento pela independência da Índia, através de uma campanha de resistência, sem uso da violência. Jesus Cristo tornou-se líder inspirador de uma religião que dividiu a história entre antes e depois e seus ensinamentos fundamentam a fé de bilhões de pessoas ainda hoje.
As respostas às várias indagações expostas aqui, depende de quem enxerga cada pergunta. Portanto, não existe uma resposta final, definitiva. Cabe a reflexão de cada um para poder alcançar sua resposta. A sua verdade.
Nêmeses do Batman – Por fim, o Coringa (Joker), simbolo adotado no recente protesto, é um personagem que surgiu nos quadrinhos da editora norte americana, DC Comics, criado, em 1940, Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane, como o grande inimigo do herói Batman. Popularizado na divertida série de TV dos anos 60, interpretado por Cesar Romero, ganhou uma leitura mais sombria nos anos 80, com clássicos dos quadrinhos como Batman – Cavaleiro das Trevas (1986), de Frank Miller, A Piada Mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland e Asilo Arkham (1989), de Grant Morrison, que se refletiu nos filmes Batman (1989), com o Coringa de Jack Nicholson, Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), com o também personagem de Heath Ledger, vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e a última versão do filme Coringa (2019), interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix, com as mãos quase no Oscar de Melhor Ator. Lembrando que o filme conquistou 11 indicações ao Oscar.
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